Programa de Pós-graduação em Direito
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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O direito fundamental à moradia

Foto: Reprodução. Carlos Becerra/Getty Images

Não se pode olvidar que diversos instrumentos internacionais consagram o direito à moradia, além de constar, expressamente na CF/88, no título destinado aos direitos fundamentais, conquanto as políticas públicas voltadas à sua promoção são insuficientes.

Por Robson Martins & Érika Silvana Saquetti Martins

As cidades foram idealizadas para os seres humanos e não existem por si sós, pois de forma consectária, visam o bem estar da sociedade, já que a precípua virtude de uma cidade: “[…] é que as pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a tantos desconhecidos. Não se devem se sentir ameaçadas por eles de antemão. O distrito que falha nesse aspecto também fracassa em outros e passar a criar para si mesmo, e para a cidade como um todo, um monte de problemas” (JACOBS, 2011, p. 30).  

Deveras: “[…] O rumo dos acontecimentos não só reduziu as oportunidades para o pedestrianismo como forma de locomoção, mas também deixou sitiadas as funções cultural e social do espaço da cidade. A tradicional função do espaço da cidade como local de encontro e fórum social para os moradores foi reduzida, ameaçada ou progressivamente descartada” (GEHL, 2015, p. 3). 

Com a chegada da família real de Portugal para o Brasil, em 1808, e a consectária abertura dos portos e o ingresso de produtos industrializados no país, precipuamente oriundos da Inglaterra, o Brasil, que até então se dedicava quase integralmente à pauta rural, precipuamente da cana de açúcar, começou a demonstrar sinais notórios de que as cidades poderiam se desenvolver industrialmente e com serviços, expandindo seus limites territoriais, sendo expoentes, no caso, o Rio de Janeiro e São Paulo, mas também outras cidades país afora, mais especificamente no Sul e Sudeste. 

Neste contexto, a terra urbana, precipuamente, então, tornou-se algo extremamente valioso e motivo de disputa entre inúmeros interesses, invasões, grilagens e até mesmo crimes, já que se tornou uma fonte de enorme valorização do capital, incentivo à riqueza da elite, produção de mais-valia especulativa do mercado imobiliário (HARVEY, 2006), iniciando-se, também, o processo de favelização das cidades, com inserção de parcela da população em suas periferias, em função do alto custo da terra urbana nas áreas mais centrais e nobres da cidade. 

No Rio de Janeiro, após a guerra de Canudos, os soldados que retornaram de tal situação extrema, na ausência de moradias dignas fornecidas pelo governo, chegando ao Rio de Janeiro, acabaram por improvisar barracos no Morro da Providência – então Morro da Favella (MAGALHÃES, 2003). 

Na perspectiva, unindo-se aos recém expulsos dos cortiços no bojo da reforma urbana higienista do então prefeito Pereira Passos (ibidem), iniciando então o processo de favelização e demonstração clara de pobreza e da desigualdade social em nosso país, numa forma evidente de desestrutura social e uso irregular do solo como única opção de moradia popular. 

A pobreza tem ligação umbilical com as construções irregulares nas periferias das grandes cidades:  

[…] É frequente imputar-se a pobreza, e sobretudo a pobreza urbana, ao crescimento demográfico. Para os que gostam da construção de gráficos, a tarefa pode ser apaixonante e muito simples: a curva da população e a das carências aumentam simultaneamente. Usa-se, portanto, um paralelismo para uma relação causal. Para o resto, o problema é facilmente resolvido: basta retomar as ideias de Malthus ou alinhar mecanicamente as cifras de evolução demográfica do lado das do aumento do produto”.(SANTOS, 2013, p. 24). 

Neste sentido é que: “[…] A valorização imobiliária, ou seja, a propriedade que têm os imóveis de se valorizarem, está na base da segregação espacial e da carência habitacional. Em torno dela, ou seja, em torno da apropriação da renda imobiliária, é travada uma surda luta no contexto urbano” (MARICATO, 2004, p. 45). 

A vida urbana e sua contextualização mercantilista aborda vários conflitos, dificultando o acesso à terra urbana às pessoas mais carentes e vulneráveis, sendo fator, inclusive, da criação de favelas e outros agrupamentos urbanos irregulares: “[…] A cidade é o lugar onde as pessoas de todos os tipos e classes se misturam, ainda que relutante e conflituosamente, para produzir uma vida em comum, embora perpetuamente mutável e transitória” (HARVEY, 2014, p. 134). 

O viés capitalista dispensado às terras urbanas tornou-se um real problema para as populações mais vulneráveis, na medida em que, segundo Sposito (2018, p. 74).: 

[…] Na economia capitalista, tudo se torna mercadoria, até mesmo a terra. O preço do aluguel ou da compra do imóvel é determinado pelo fato de ser um bem indispensável à vida, de ser propriedade de alguns homens e não ser de outros, e de que nas cidades o seu valor se eleva pelo alto nível de concentração populacional e de atividades.  

O tema das cidades é sempre recorrente quanto às políticas públicas dos diversos entes governamentais e discussões políticas acaloradas no parlamento e no Executivo, pois: 

[…] tem aparecido como pauta política e como objeto de pesquisa de diversos movimentos sociais, manifestações públicas, seminários e debates acadêmicos. A partir de um prisma de abordagens e conteúdos, o direito à cidade se torna uma maneira de exprimir uma forma de relação com a vida e com a crise urbanas que busca os caminhos de sua transformação” (CARLOS, 2017, p. 95). 

A respectiva vulnerabilidade social, políticas estatais higienistas e de invisibilização dos mais carentes é que surge a dificuldade de moradia digna aos idosos, já que em regra, a dificuldade de moradia existe para todos, mas para os vulneráveis esta se torna imperiosa, na medida em que os idosos possuem várias outras despesas, tais como remédios, tratamentos médicos, fisioterápicos, além de não ser raro auxiliarem outros membros da família com seus parcos recursos. 

O assunto “moradia” foi demonstrou-se na Conferência das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, de 1976, realizada no Canadá, que implicou na Declaração de Vancouver sobre Assentamentos Humanos, na qual restou assentado que a moradia adequada é um dos direitos básicos da pessoa humana (SARLET, 2002, p. 138). 

Não se pode olvidar que diversos instrumentos internacionais consagram o direito à moradia, além de constar, expressamente na CF/88, no título destinado aos direitos fundamentais, conquanto as políticas públicas voltadas à sua promoção são insuficientes, qualitativa e quantitativamente. 

O direito à moradia digna, em decorrência de ser um direito humano essencial, resta protegido em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, positivado no texto constitucional, como uma verdadeira consequência da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (SOUZA, 2004, p. 131). 

Tal garantia, entretanto, não se resume à simples necessidade de prover um teto para o indivíduo, tendo em vista que a moradia tem uma dimensão tendente à ideia de segurança, que compreende, além do abrigo, a necessidade de que o sujeito seja titular de algum direito que incida sobre um imóvel, que, por sua vez, é seu suporte físico.  

É inconveniente garantir apenas a titulação do lote, pois, muitas vezes, a forma como a área foi ocupada é fonte de verdadeiras injustiças, tendo em conta o fato de que há assentamentos nos quais determinados lotes têm medidas significativamente superior à média dos demais (ALFONSIN, 2000, p. 212). 

No mesmo interregno existem determinados imóveis encravados, ou seja, que não dispõe de acesso a qualquer via ou logradouro público. Nesse mesmo sentido, as favelas não dispõem da mais basilar infraestrutura, até porque nem mesmo são servidas pelo fornecimento de água potável (ALFONSIN, 2000, p. 212). 

É nesse sentido que se demonstra a complexidade do direito fundamental à moradia, assim como o fato de que o simples fato de alguém dispor de um teto sobre a cabeça não poderia equivaler sequer à sua concretização minimamente bastante. Mais do que isso, um lar é indispensável à dignidade de qualquer pessoa, bem como à sua liberdade e, consequentemente, à sua autodeterminação. 

Nesta vertente é que o item 11 da agenda 2030 do Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento, no que se refere às cidades e comunidades sustentáveis, tem como objetivo o de tornar as cidades e comunidades mais inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis (ONU, 2015, [n.p.]). 

O item 11.b tinha por objetivo, até 2020, aumentar substancialmente o número de cidades e de assentamentos humanos, adotando e implementando políticas e planos integrados voltados à inclusão, à eficiência dos recursos, à mitigação e adaptação às mudanças climáticas e à resiliência a desastres (ONU, 2015, [n.p.]). 

Por sua vez, o item 11.1 objetiva, até 2030, garantir o acesso universal à habitação segura, adequada e com preço acessível, e aos serviços básicos e urbanizar as favelas, bem como o aumento da urbanização inclusiva e sustentável, e das capacidades para o planejamento e a gestão de assentamentos humanos participativos, integrados e sustentáveis (ONU, 2015, [n.p.]). 

Verifica-se, assim, o direito a um “lugar no mundo” e, consequentemente, na comunidade. Imperioso notar que aquele objetivo não restou sequer minimamente concretizado, precipuamente no Brasil, país periférico, situação que se torna ainda mais evidente nos centros urbanos, enquanto o prazo para este ainda não se esgotou.  

Fator digno de destaque é o de que a formação das cidades brasileiras teve como pontos nevrálgicos o mal aparelhamento, a liberalidade e a predominância dos fins econômicos. Referida situação teve como principal consequência, a situação de que a construção das grandes cidades foi eminentemente litorânea (MOTA, 2018, p. 3). 

Em um quadro de injustiça fundiária como o que se dá no Brasil, notadamente em decorrência do processo desordenado de urbanização e da especulação imobiliária exacerbada, demonstra ter impactos graves naquilo que concerne ao direito fundamental à moradia, precipuamente aos idosos e vulneráveis, em que pese as tentativas pontuais dirigidas a resolução da problemática, notadamente advindas do poder Legislativo. 

Há real necessidade de que o Estado intervenha diretamente em tais políticas públicas de habitação, precipuamente para as populações de baixa renda, fomentando instituições financeiras ao respectivo financiamento imobiliário e subsidiando a construção de moradias e aquisição da terra rua, efetivando, assim, o postulado básico da dignidade da pessoa humana, através da moradia (art. 6º, caput da CF/88). 

Robson Martins
Mestre em Direito. Especialista em Direito Civil, Notarial e Registral. Professor do ensino superior. Procurador da República. Promotor de Justiça PR 99/02. Técnico JFPR 93/99.

Érika Silvana Saquetti Martins
Doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.

Texto disponibilizado no Migalhas em: https://www.migalhas.com.br/depeso/369798/o-direito-fundamental-a-moradia.

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