Reprodução do vídeo “Corrida por $100 feita de privilégio e desigualdade” disponível no YouTube
Por Arícia Fernandes e Allan Borges
Aparentemente numa aula de Educação Física, uma turma de alunos adolescentes brancos e pretos, de idades próximas, se posiciona numa linha de largada; ganha $100 o que alcançara nota em primeiro lugar, posicionada algumas centenas de metros à frente. Antes da largada, porém, o professor pede que deem dois passos para frente os que têm pais casados; depois mais dois, os que estudaram em escolas particulares; outros tantos, os que nunca precisaram pensar em qual seria sua refeição no dia seguinte; e continua a citar várias situações, que independem de qualquer esforço pessoal, mas que viabilizam o adiantamento de muitos em relação àqueles qeae vão ficando para trás.
Na hora desse posicionamento, que define a largada de cada um, verifica-se uma quanridade razoável de alunos, a maioria branca, bem distante do ponto inicial e outros tantos pelo meio do caminho. Então, O professor pede que os que deram passos à frente olhem para ais, e eles podem ver muitos alunos, a maioria negros, ainda ombreados na linha de partida. É um vídeo clássico sobre meritocracia: chama-se “Corrida por $100 feita de privilégio e desigualdade”, disponível no canal da youtube: https://www.youtube.com/watch?v=L177yGji8eM.
Infelizmente, ainda é comum ouvia-se que CO desempregados, moradores de áreas de risco (encostas e margens de rios), pessoas em situação de rua, coristas, bolsistas do Prouni, beneficiários da extinto Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada – BPC representam uma massa de incapazes de emergir e vencer a “competição” da vida real. Em outras palavras, são adjetivados como preguiçosos ou criticados por viverem em tais condições; os únicos culpados par nunca saírem do lugar.
O argumento mais ou menos elaborado é resumidamente justificado e “geralmente” ancorado no conceito da meritocracia: a vitória pelo mérito. Michael Sandle, o famoso professor popstar da Universidade de Harvard, em seu livro A Tirania do Mérito”, demonstra que o critério da meritocracia, pelo qual as pessoas ascendem socialmente apeiras em razão de seus próprios esforços e habilidades – e não em função do nascimento ou das circunstâncias de seu crescimento pessoal, cor, raça ou classe – apenas perpetua uma aristocracia hereditária que legitima as desigualdades e esgarça os laços de solidariedade em relação àqueles que são “perdedores’: afinal, porque não se esforçaram o suficiente…
A pergunta que fica é: a meritocracia é promotora de desigualdades sociais ou trata-se de um mecanismo de justiça? Qual seria a sua resposta? Como você se posiciona politicamente a esse respeito? Onde estava a sua posição de largada? Acaso olhou para trás?
Sem igualdade de partidas, não haverá meritocracia, tampouco democracia. Na verdade, a meritocracia é urna farsa que funciona como urna indústria, com produção em escala mundial, para o descarte de pessoas pobres e vulneráveis. Não tem meio termo: para quem defende a farsa meritocrática, a pobreza é trabalhada nas ambivalências, tais como criminalização da maioria ou a glorificação de alguns poucos que conseguem fugir à regra, “vencendo” apenas para confirmá-la.
É difícil, há de se reconhecer, ler histórias de superação e não se emocionar ou momentaneamente se iludir com a suposta meritocracia pela qual, mesmo os menos afortunados, alcançam ascensão social. Ela rejeita, porém, a grande maioria dos que não conseguirão chegar muito longe, a despeito de quaisquer esforços; legitima a desigualdade; e desincumbe o Estada de adotar políticas públicas afirmativas. Não significa uma resposta para as injustiças sociais. O que se deve descartar do repertório da humanidade não são os pobres e vulneráveis, mas a racismo, a homofobia, a xenofobia, o feminicídio, o machismo, o preconceito de classes e as inúmeras formas existentes de opressão.
Precisa-se de uma sociedade na qual não exista necessidade de competir em “desigualdade de partida para se obter vitória e reconhecimento social; em que cridos possam efetivamente sair da mesma linha de largada; em que esse seja a real sentido da expressão fair-play.
Em sua ironia fina, Sandle ressalta que “quem faz sucesso tende a achar que é graças a si mesmo”…
Por sua vez, as classes mais vulneráveis possuem trabalhos mais penosos e gastam mais tempo nos transportes públicos, quando não ficam fadados à imobilidade urbana. Essa população possui os piores acessos à assistência, saúde e educação de qualidade, bem como péssimas estruturas de apoio e acolhimento. Então, não sobra tempo para o desenvolvimento profissional, o que, praticamente, os condena a empregos precários, impedindo a mobilidade social.
A meritocracia engendra uma elite que se arvora em narrar que serve ao público quando, na verdade, muitas vezes se retroalimenta das vantagens que seus privilégios lhe conferem: podem largar na frente da maioria em qualquer circunstância, competição ou disputa. O problema é que isso é um sistema fechado, autopoiético. Trata-se de uma retroalimentação sistêmica viciosa em que as elites no passado receberam e atualmente entregam, por exemplo, a melhor e anais cara educação para seus descendentes de uma forma que ninguém mais consegue proporcionar, no intuito de lhes garantir essa vantagem competitiva que os perpetuará no topo da hierarquia social. Do outro lado, legitima-se também o pacto intergeracional da pobreza dos que estão excluídos desse sistema. E que não receberão suporte de um Estado que acredita que ser meritocrático é se abster de interferir na “livre competição social”.
O mais curioso em tudo 1.0 é que não para por aí, pois esse contingente privilegiado organiza o mundo do trabalha de modo a reproduzir essa clivagem entre “vencedores” e “perdedores”: os trabalhos com melhores remunerações são quase exclusivamente vinculados às habilidades e competências que apenas o ensino mais caro proporciona.
E você, ainda acredita na meritocracia sem igualdade de partidas?
Texto disponibilizado na Edição nº 23.968 do Correio da Manhã de 10 de março de 2022