por Luma Amaral*
Enuncia o artigo 2º do Decreto Lei nº 3.365 de 1941 que qualquer bem ou direito que possua valoração econômica pode ser desapropriado pelo Poder Público.
O diploma, contudo, apresenta uma visão patrimonialista dos bens e direitos, ao regulamentar a desapropriação da propriedade sobre eles, e não a posse.
Não obstante, os Tribunais Superiores têm tímida jurisprudência no sentido de considerar a posse como bem jurídico suscetível de desapropriação e, portanto, indenização, admitindo o levantamento do valor pelo possuidor.
Embora represente avanço na temática, na nossa pesquisa, ainda embrionária, surgiu a hipótese de que a jurisprudência apontada se refira principalmente a casos em que não há oposição fundada sobre a titularidade do bem (art. 34, DL nº 3.365/41), quando o proprietário é desconhecido, quando já cumprido os requisitos da usucapião ou quando a posse se lastreia em justo título (ex: promessa de compra e venda)[1]. No mesmo sentido, dispensam do pagamento de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) proprietário de imóvel “invadido” (rectius, ocupado) de forma consolidada por população de baixa renda.[2]
O problema levantado, então, é investigar qual o tratamento da posse ad usucapionem que ainda não preencheu todos os requisitos da usucapião nas desapropriações. Por exemplo, qual a posição jurídica de um possuidor que mora no imóvel há 04 (quatro) anos objeto de desapropriação e que, embora preencha os demais requisitos da usucapião, ainda não completou o período aquisitivo para adquirir o bem.
De nada adianta para a presente discussão apenas se admitir a desapropriação/indenização daquele possuidor que já preencheu os requisitos da prescrição aquisitiva, porque este, nada mais é do que proprietário, diante dos efeitos declaratórios da sentença de usucapião.
Em se tratando de bens imóveis, na maioria esmagadora das desapropriações, o que o Poder Público almeja, de imediato, é justamente a imissão na posse e não a mudança da titularidade no Registro de Imóveis. O que é pretendido é a imissão na posse direta para que, e.g., se possa iniciar a construção da escola, o alargamento da via, a obra de drenagem e as demais políticas públicas.
Contudo, curiosamente, apesar de o ente desapropriante pretender de início a imissão na posse do bem, todo o regramento é pensado em função do direito de propriedade e do proprietário, ignorando aquele que sofrerá diretamente os efeitos da decisão, ou seja, o possuidor.
Pela literalidade do Decreto Lei, quando a Advocacia Pública, (re)presentando o desapropriante, ajuíza a ação de desapropriação, a indicação do proprietário na inicial é suficiente ao prosseguimento da demanda e à análise de eventual pedido liminar, ainda que haja possuidor direto distinto do proprietário no local. Do mesmo modo, o Poder Judiciário, ao receber a demanda, à luz do Decreto Lei, não é obrigado a se preocupar com quem ocupa o local.
Por sua vez, a desapropriação na via administrativa encontra o mesmo descompasso com a realidade. Quando o legislador teve a chance de se redimir do tratamento indiferente conferido à posse, em pleno ano de 2019, o artigo 10-A, incluído pela Lei nº 13.867, de 2019, que alterou o DL nº 3.365 de 1.941 para prever a obrigatoriedade da fase administrativa na desapropriação, preconizou expressamente que “o poder público deverá notificar o proprietário e apresentar-lhe oferta de indenização”, reforçando o alijamento, mais uma vez, do possuidor do procedimento da desapropriação.
Seria possível, assim, a situação esdrúxula de o desapropriante negociar e indenizar apenas o proprietário na via administrativa da desapropriação de determinado imóvel que tenha terceiro como legítimo possuidor.
Daí variadas e imprevisíveis consequências são possíveis, as quais desafiam o princípio da eficiência que rege a Administração Pública, de um lado, e a autonomia da posse, de outro, como, por exemplo, o desapropriante pode ter que ingressar com ação de imissão na posse em face do possuidor que resistir sair do local, o que afasta todos os benefícios da desapropriação amigável.
Outra contradição possível é que aquele proprietário que eventualmente já tivesse perdido a posse direta do bem há anos e que dificilmente conseguiria a retomar com facilidade, seria extremamente beneficiado pela desapropriação, enquanto aquele possuidor que eventualmente poderia vir a preencher os requisitos da usucapião será impedido pelo próprio Poder Público.
A título de exemplo, alguns trechos da desapropriação realizada pelo Município do Rio de Janeiro para a obra da Transcarioca foram ajuizados apenas em face do proprietário constante no Registro de Imóvel, enquanto no local havia terceiros possuidores. Foram emitidos mandado de imissão na posse sem sequer a percepção de que haviam possuidores no local. Com isso, a Defensoria Pública ajuizou ação civil pública em face do Município do Rio para compeli-lo a incluir as famílias em programa habitacional ou conceder aluguel social, mas, mesmo assim, sem, que se defendesse ainda o pagamento de indenização pela desapropriação da posse.[3]
Ainda em uma reflexão inicial, propõe-se que, enquanto não sobrevier as alterações legislativas necessárias que considerem o possuidor no processo expropriatório, que a advocacia pública o inclua na negociação administrativa da desapropriação, assim como indique necessariamente na inicial expropriatória a existência ou não de possuidor no local, o que, na sua omissão, deve ser exigido pelo Poder Judiciário. Até porque, em algumas situações, mais vale o acordo diretamente com o possuidor para conseguir a imissão na posse do que a desapropriação do direito de propriedade.
Neste sentido, defende-se a indenização autônoma da posse ad usucapionem que ainda não preencheu os requisitos da usucapião, proporcionalmente ao tempo de posse, mesmo que conhecido e interessado o proprietário, sem prejuízo da indenização do proprietário pelo valor da propriedade, avaliada tal qual exercida – e.g, considerando a perda da posse direta, a ausência de observância da função social e etc -, sendo a soma de ambas a indenizações limitadas ao valor da propriedade “plena”.
Para tanto, é necessário que os Poderes incorporem e reconheçam em suas atuações a autonomia da posse em relação à propriedade, tão esbravejada no campo teórico, com vistas a conferir maior segurança jurídica às negociações que incluam a posse, concretizar o princípio da eficiência e a função social da posse.
* Luma Amaral possui graduação em Faculdade de Direito pela Universidade de Salamanca (2011) e graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense (2013). Mestranda em Direito à Cidade na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Integrante da Câmara de Resolução de Regularização Fundiária do Município de Niterói. Atualmente é Procuradora do Município de Niterói lotada na Procuradoria de Patrimônio, Meio Ambiente e Urbanismo – Procuradoria Geral do Município de Niterói.
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[1] (STJ, REsp nº 769.731/PR, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, j. 08.05.2007); (STJ, AgRg no AgRg no REsp nº 1.226.040/SP, Relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, j. 07.04.2011) [2] Por todos, “Controverte-se acórdão que manteve a sujeição passiva da autora na relação jurídica tributária concernente ao IPTU. 2. A recorrente sustenta que não questiona a sua condição de proprietária de imóvel, mas entende que a invasão da rua na qual este se encontra situado, com potencial para abranger futuramente a própria tomada ilegal do bem de sua propriedade, esvaziou o domínio útil e deve implicar a inexigibilidade do IPTU. (…) 4. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que, em casos em que se encontra consolidado, definitivo, o esvaziamento dos atributos da propriedade (gozo, uso e disposição do bem) – tal como invasões irreversíveis ou desapropriação indireta, por exemplo – não incidem os tributos sobre eles incidentes: REsp 1.144.982/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 15/10/2009 e REsp 963.499/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 14/12/2009. 5. Na hipótese dos autos, as premissas fáticas estabelecidas no acórdão hostilizado expressamente indicam que o imóvel propriamente dito permanece na propriedade da recorrente, pois a invasão não ocorreu nele, mas sim na via pública na qual ele se encontra edificado, invasão essa que possui “caráter provisório”, isto é, sem que se possa considerar imutável eventual esvaziamento da propriedade. REsp 1793505 / SP – Rel. Min. Herman Benjamin – DJ 26/02/2019” (Grifo nosso) [3] TJRJ, Ação Civil Pública nº 0159877-85.2011.8.19.0001, 19ª Câmara Cível, Relator Lúcio Durante, j. 20.05.2014 “(…)LARGO DO CAMPINHO N° 443-A, 443-B, APTOS. 201 E 202 (AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO N° 0278412-07.2010.8.19.0001, 9a VARA DE FAZENDA PÚBLICA) – O imóvel se via ocupado por famílias — que não as do proprietário — circunstância que veio a ser apurada por ocasião das providências de imissão provisória na posse. 13 (treze) famílias já foram realocadas no Condomínio Livorno, em Cosmos, estando as demais com a mudança já programada (fls.257). Na sequencia da demanda, foi informado ainda que, em 4 de maio de 2011, data anterior ao ajuizamento da presente demanda, mais 10 (dez) famílias já teriam tido imediata inclusão no benefício do aluguel social, até que fossem reassentadas definitivamente no Empreendimento “Vila das Patativas”, situado na Estrada do Campinho — Campo Grande, com previsão de entrega em 3 (três) meses (fls.258).(…)” (Grifo nosso)